terça-feira, 25 de agosto de 2009

os Porões da Relação Brasil-EUA na ditadura Militar

Em 1971, quando o ditador brasileiro visitou os EUA, o anfitrião não hesitou em encher a bola do regime militar: “Para onde for o Brasil, irá o resto da América Latina”. Fez a alegria dos bajuladores. Nélson Rodrigues, que já dedicara uma coluna a louvar a beleza do ditador (“um perfil de moeda, de cédula, de selo”), escreveu em O Globo: “Aí está por que emudeceram todas as piadas (sic, como se não fossem censuradas...), porque o próprio Brasil deixa de ser uma piada. Quando reconhece o Milagre Brasileiro, Richard Nixon ensina o Brasil a ver Emílio Garrastazu Médici como o nosso maior presidente”. Por outro lado, deu dor de cabeça ao então chanceler Mário Gibson Barbosa. Já era difícil apaziguar a Argentina, decidida a bloquear Itaipu. O general Alejandro Lanusse, que via a obra como um polo econômico capaz de seduzir seu norte subdesenvolvido e uma ameaça estratégica à Bacia do Prata, fez de tudo para acirrar as desconfianças de outros países sul-americanos contra o Brasil. O Itamaraty gastou muita saliva para explicar o “mal-entendido”. Em 27 de maio de 2009, como parte de uma política de transparência, o governo Obama desclassificou o segredo de vários documentos sobre a diplomacia dos EUA de Dwight Eisenhower a Ronald Reagan. Em 16 de agosto, The National Security Archive, site de história da George Washington University, destacou cinco documentos relacionados à visita de Médici e mostrou como o suposto mal-entendido havia sido muito bem entendido. A ditadura brasileira era procuradora dos EUA na região e intervinha em países vizinhos de acordo com a Casa Branca. Participou da preparação do golpe contra Salvador Allende, ajudou a fraudar a eleição que deu a vitória ao Partido Colorado no Uruguai, socorreu a ditadura de Hugo Banzer na Bolívia e conspirou com Nixon contra o peruano Juan Velasco Alvarado. O destaque é o relatório de Henry Kissinger sobre o encontro, no qual o general Vernon Walters (elo entre os EUA e os golpistas brasileiros desde Jango e a Operação Brother Sam) serve de intérprete. Primeiro, os negócios: Médici pede mais recursos para o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID, formalmente controlado por 48 países, sendo 30% do capital dos EUA), que há um ano proporcionara ao Brasil o maior financiamento já concedido a um país latino-americano, para a construção da hidrelétrica de Ilha Solteira. Nixon fala da dificuldade de persuadir o Congresso à “cooperação com a América Latina”, mas troca o tema espinhoso por outro no qual pode dar mais alegrias ao visitante. Garante que, apesar da realpolitik de Kisssinger, de distensão com a URSS de Brejnev e a China de Mao, nada mudaria quanto a Havana “enquanto Castro estiver no poder e continuar a tentar exportar a subversão”. Médici diz que essa posição “coincide exatamente com a do Brasil” e pede instruções sobre a proposta peruana de readmissão de Cuba na OEA: os EUA querem que o Brasil entre na comissão que estudaria a proposta e ajude a sabotá-la, ou prefere que o País se recuse a participar? Nixon fica de estudar a questão e responder depois, por uma linha confidencial, entre Kissinger e o coronel Manso Neto, assessor de Médici, à margem do chanceler brasileiro e do secretário de Estado William Rogers. O ditador quer ajudar os exilados cubanos a derrubar Fidel. Nixon diz que deviam, mas sem “incitá-los a fazer algo que não pudéssemos apoiar, nem deixar nossa mão aparecer”. Na prática, ignorou a sugestão, apesar da insistência de Médici. Médici relata uma negociação com Hugo Banzer, que lhe pedira para fiar 30 mil toneladas de açúcar, alegando que a falta do produto faria cair a nova ditadura boliviana (que três meses antes depusera o general nacionalista Juan José Torres) e daria lugar à extrema-esquerda. Quando o ditador brasileiro cedeu, o boliviano disse precisar também de dez Xavantes. Médici esnoba: tem “muita dificuldade em entender a mentalidade hispano-americana”. Recusou por “achar ridículo uma nação em dificuldades econômicas querer caças a jato”. Diz, por outro lado, ter persuadido o ditador paraguaio Alfredo Stroessner a vender energia da futura Itaipu à Bolívia, que, se não fosse ajudada, se tornaria comunista, receberia ajuda soviética e tentaria reverter o resultado da Guerra do Chaco. Nixon aprova. (Banzer cairia antes de Itaipu operar e o Brasil não permitiu ao Paraguai vender eletricidade a terceiros.) Zomba do vizinho por querer “tecnologia paraguaia” na represa – seria como querer tecnologia brasileira num projeto conjunto com os EUA, explica – e fala das dificuldades com a Argentina. Pretende “falar com muita franqueza” a Lanusse, quando vier ao Brasil, “não de presidente para presidente, mas de general para general”. Nixon se diz preocupado e gostaria que Médici lhe relatasse a visita. (Na recepção no Itamaraty, o ditador argentino acusaria o Brasil, sem aviso, de causar prejuízos à Argentina com Itaipu. Médici, inconformado, recusou-se a falar quando foram “conversar”. Os generais ficaram a olhar um para o outro em silêncio, até o chanceler brasileiro interromper a saia-justa chamando-os a se reunirem aos convidados.) Daí em diante, Nixon toma a iniciativa. Passa ao que mais lhe interessa: como vai o golpe contra Salvador Allende. Médici diz estar trabalhando para ele ser derrubado como João Goulart: os exércitos brasileiro e chileno trocavam oficiais e faziam planos. Nixon diz ser importante que os EUA e o Brasil trabalhem juntos e oferece dinheiro e qualquer ajuda que possa ser dada com discrição. Passa então a Velasco, que defendia Cuba na OEA. O general Walters sai do papel de intérprete para sugerir usar contra o general peruano, que conhecera quando ambos foram adidos em Paris, as relações extraconjugais com uma ex-miss Peru esquerdista, com a qual tivera um filho. (Allende foi deposto da maneira anunciada vinte meses depois, mas a sugestão de Walters deve ter sido descartada . Velasco só caiu em 1975, quando estava doente e enfrentava uma crise econômica.) Depois, Nixon pede informações sobre a construção da Transamazônica e outras estradas a serem ligadas com a rodovia Panamericana, pede a Médici para aprovar o comunicado conjunto e encerra a reunião. Outro memorando de Kissinger, liberado desde 2002, ficou agora mais interessante. Relata o encontro de Nixon com o primeiro-ministro britânico Edward Heath, onze dias depois. O presidente responde sobre Cuba: “Castro é radical demais até para Allende e os peruanos. Continua empenhado na subversão hemisférica, não há sinal de que esteja disposto a um acordo. Nossa posição é apoiada pelo Brasil, que, afinal, é a chave para o futuro. Os brasileiros ajudaram a fraudar a eleição uruguaia. O Chile é outro caso, a esquerda está em apuros. Há forças em ação que não desencorajamos”. No que se refere ao Uruguai, trata-se da eleição de 28 de novembro de 1971, na qual o colorado Juan María Bordaberry teve oficialmente 12 mil votos a mais que o blanco Wilson Ferreira. A denúncia de fraude foi rejeitada pela Justiça uruguaia, Bordaberry suspendeu a Constituição, proibiu sindicatos, dissolveu o Congresso, pôs os militares no poder e ficou como figura decorativa até 1976. Três outros documentos relacionados ao encontro foram liberados com cortes. Um memorando de Walters a Kissinger diz que Nixon ficou “muito impressionado e feliz com a relação pessoal e a proximidade de suas visões” e a admiração era mútua. Outro memorando, da CIA, relata reações dos militares brasileiros ao encontro: o general Dale Coutinho (comandante no Nordeste, depois ministro do Exército de Ernesto Geisel) queixa-se de que “os EUA obviamente querem que o Brasil faça o trabalho sujo”. No relatório da CIA sobre o Brasil, de janeiro de 1972, continuam secretos quatro dos cinco itens (ocultando ações dos EUA ou nomes de agentes?) e o quinto só trata de perspectivas: bom desempenho econômico (não se cogitava do choque do petróleo) e maior papel do Brasil nos assuntos hemisféricos, com possíveis intervenções e ações secretas contra governos de esquerda (Chile e Peru) e para sustentar seus aliados na Bolívia e no Uruguai. Águas passadas? Nem tanto. Embora a maioria desses personagens esteja morta ou esquecida (só Fidel e Kissinger ainda são influentes) e o cenário sul-americano tenha mudado muito, a estratégia e os métodos dos EUA na América Latina parecem essencialmente os mesmos. Além do respaldo mais que moral de Washington às tentativas de golpe contra Hugo Chávez e Evo Morales, é de notar a escala tecnicamente desnecessária na base estadunidense de Soto Cano, Honduras, do avião que levou o presidente hondurenho Manuel Zelaya de Tegucigalpa ao exílio na Costa Rica. Os golpistas tinham a quem pedir licença, no mínimo. Terá um Vernon Walters sugerido escândalos sobre o paraguaio Fernando Lugo? Foi a eleição do mexicano Felipe Calderón, em 2006, fraudada com ajuda externa? Não mostra o colombiano Álvaro Uribe tanta disposição quanto Médici a servir aos EUA e a barrar o retorno de Cuba à OEA defendido pela Venezuela? É difícil a um império velho aprender truques novos, mas às vezes os antigos funcionam.

Matéria extraída de: wwwcartacapital.com.br

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