segunda-feira, 15 de março de 2010

Marxismo e Religião - parte 1


Marxismo e religião: questões preliminares

(Publicado em Revista Maracanã, vol.3, 2007.)

Edgard Leite

I
Cabe talvez a Franklin Baumer a identificação daquilo que denominou de “tradição cética” do Ocidente (Baumer, 1960: 19). As suas origens mais visíveis estão nos séculos XVI e XVII, mas Baumer aponta raízes medievais mais profundas. Estas são localizáveis, por exemplo, na disseminação do dito averroísmo em círculos intelectuais europeus no século XIII. Atribuído a Averroes, tal pensamento afirmava, entre outras coisas, a existência de “três grandes impostores”: Jesus, Moisés e Maomé, defendendo uma atitude de desconfiança diante das religiões monoteístas (Baumer, 1960: 101). Poderíamos encontrar idéias análogas nas fontes clássicas mais antigas, gregas e romanas. Nelas o ceticismo diante de crenças populares ou dogmáticas sobre a natureza de Deus era generalizado. Mas o fato é que a consolidação dessa “tradição cética” e sua transformação em efetiva corrente de opinião intelectual e política com penetração em toda sociedade é sim fenômeno posterior ao século XVI .
Baumer sugeriu com precisão que a “tradição cética” está ligada ao fortalecimento de diversas crenças. Em primeiro lugar, a crença na capacidade humana tanto de entender as leis da natureza, e exercer sobre ela controle, quanto na de organizar racionalmente a sociedade. Em segundo, a confiança na dignidade do ser humano e sua capacidade de realizar atos virtuosos e morais. A crença em Deus tornou-se, assim, na opinião de muitos, desnecessária para o entendimento ou legitimação dos atos humanos (Baumer, 1960: 67- 71). Para os historiadores contemporâneos, ou aqueles influenciados, em maior ou menor grau, pelo pensamento marxista, refletir sobre esse processo implica, no entanto, em diligências que certamente não são fáceis.
O marxismo é um sistema teórico holístico, e nele o conceito de totalidade é usado no sentido de que “o adequado entendimento de um fenômeno complexo advém apenas de uma apreensão de sua integridade relacional”, como definiu Martin Jay (Jay, 1984: 24). Ou como escreveu Marx, de forma mais reflexiva ou seminal: “a coisa toda deve, é claro, ser descrita em sua totalidade (e, portanto, também a recíproca ação de seus diversos aspectos uns com os outros)” (Marx e Engels, 1976: 61). Esse desafio teórico fez com que incontáveis pensadores marxistas flutuassem entre dois pólos: o da crença na determinação econômica sobre todos os aspectos da existência humana, inclusive os subjetivos, como no marxismo vulgar do século XX, e o da tentativa de estabelecer uma teoria geral da sociedade - que pudesse efetivamente incluir as dimensões subjetivas e objetivas num único e orgânico sistema, como em Maurice Godelier ou Georg Lukács.
Hoje tal objetivo teórico - a construção de uma teoria social e histórica totalizadora – parece, a alguns, muito ousado. Muitos o caracterizam como um dos aspectos mais pretensiosos ou perigosos do marxismo. Em grande medida porque a tentativa de reduzir a integridade relacional a modelos operacionais – que devem ter um grau expressivo de estabilidade - usualmente congela, impede ou deforma a apreensão de um processo, a história ou o desenvolvimento das sociedades, que está em permanente mudança. Mas é este um dos aspectos centrais do marxismo e motor de sua força analítica. Entre outras coisas porque a alternativa é uma percepção fragmentada da realidade e a renúncia à busca da coerência histórica dos processos- uma visão aniquiladora da complexidade relacional e alienadora, portanto.
A questão é que tal holismo implica na aceitação da dinamicidade do mundo e o marxismo, para ser coerente em sua busca por um sistema totalizador fundado a partir da percepção, só pode ser um sistema-processo. Como escreveu Lukács, “a totalidade não é um fato formal no pensamento, mas constitui a reprodução no pensamento do realmente existente” (Lukács, 1981: 103) e o “realmente existente” é um permanente fluir de acontecimentos. Isso não é uma novidade no que diz respeito aos sistemas científicos, ou ao marxismo. Como escreveu Adam Schaff, “o conhecimento é um processo infinito, mas um processo que acumula as verdades parciais que a humanidade estabelece nas diversas fases do seu desenvolvimento histórico: alargando, limitando, superando estas verdades parciais, o conhecimento baseia-se nelas e toma-as como ponto de partida para um novo desenvolvimento. O que acabamos de dizer para o conhecimento é válido para a verdade... É nesse sentido que a verdade é um devir: acumulando as verdades parciais, o conhecimento acumula o saber, tendendo, num processo infinito, para a verdade total, exaustiva e neste sentido, absoluta” (Schaff, 1980: 98).
Considerando tal caráter fluido das teorias, podemos assim afirmar que o marxismo, como sistema científico, é dotado de um expressivo falibilismo, isto é, admite “que suas crenças podem estar erradas, o que inclui a decorrente rejeição de atitudes dogmáticas”. Mas também sustenta um tipo de objetivismo, ou a existência “de um método objetivo que permite afirmar como verdadeiras certas crenças sobre o mundo... um método que pode ser usado por qualquer investigador competente e que levará aos mesmos resultados quando propriamente aplicado por diferentes investigadores competentes ao mesmo problema” (Audi, 2003: 263). Uma das dificuldades do marxismo, como poderemos ver, está em ser um método aplicável à realidade social, cujas variáveis subjetivas nem sempre podem ser tratadas de uma forma conseqüente com o trato simultâneo do universo da objetividade. O marxismo, apesar disso, afirma a viabilidade de uma aproximação materialista e global à realidade histórica que dê conta também da subjetividade.
A “tradição cética”, portanto, deve ser entendida na sua relação com um processo bem maior. Em princípio poderíamos dizer - acompanhando de forma parcial os marxistas vulgares do século XX - que seu desenvolvimento se confunde com a emergência do sistema capitalista e sua consolidação é um dos seus aspectos visíveis. O objetivo das atividades econômicas, a partir do final da Idade Média na Europa, passou a ser centrado na “produção de mercadorias e circulação desenvolvida de mercadorias” (“a circulação de mercadorias é o ponto de partida do capital” (Marx, 1983: 125)). Isso está de forma evidente relacionado com a valorização de justificativas de origem exclusivamente humana, sem as quais não se pode legitimar o movimento de consumir na dimensão necessária ao sistema em desenvolvimento. Tal fenômeno dá-se em visível oposição a certos modelos pré-capitalistas de entendimento do mundo que centravam no divino as fontes da legitimidade das ações do ser, ou que viam os objetivos destas como prioritariamente espirituais ou que as entendiam em função de certas dinâmicas sociais e econômicas em rota de desaparecimento.
É claro que esse movimento não é apenas econômico, mas também existencial e demonstra, como apontou Baumer, a consolidação social de certezas relativas à potência humana diante do mundo. Entre os séculos XVI e XIX tal processo passou de uma crítica limitada às tradições religiosas específicas, especialmente ao cristianismo, como em Maquiavel e Voltaire, ou ao judaísmo, como em Spinoza, a um enfrentamento denso à própria religião, como em Jeremy Bentham: “a religião... prejudica o indivíduo, instalando nele medos de tormento sem fim, privando-o de prazeres inocentes, e subjugando-o aos desejos de um caprichoso tirano. Prejudica a sociedade, através da criação da intolerância aos descrentes e heréticos [e] impedindo o progresso intelectual”( apud Baumer, 1960: 177). Esse processo foi batizado por Baumer de “a grande secularização” (Baumer, 1960: 112) e possui implicações políticas evidentes. Como escreveu Thomas Hobbes, “o Reino de Cristo não é deste mundo, portanto seus ministros não podem exigir obediência em seu nome” (Hobbes, 1979: 293). As transformações sociais, existenciais e econômicas se traduziram num enfrentamento ao poder das instituições religiosas que exerciam o controle ideológico do Estado e da ordem social. O impacto da “grande secularização” foi igualmente profundo no saber científico e histórico, como sabemos.
Todo o esforço do pensamento de vanguarda a partir dos séculos XVI e XVII é “livrar a ciência do controle teológico”, ou seja, seculariza-la e, como diria Francis Bacon “dar à Fé não mais do que as coisas que são da Fé” (apud Baumer, 1960: 112). O ditado de que a “astrologia é a mãe ingrata da astronomia”, pode ser estendido às outras ciências que irão emergir nesse movimento. Assim, a alquimia é a “mãe ingrata” da química - e a história sagrada a da história. Podemos dizer, com efeito, que é esse enfrentamento com a história bíblica - ou com a idéia de que os eventos humanos são determinados ou moldados por uma vontade externa ao homem - o conflito fundador da história, tal como a conhecemos hoje. O lento processo de rompimento das reflexões históricas com o testemunho dos textos bíblicos assinala o surgimento da disciplina. Esta adquire consistência no momento em que submete a própria Bíblia à crítica histórica. Tal reviravolta secular tem efeitos surpreendentes sobre o pensamento ocidental e, a partir do século XIX, não há texto religioso e sagrado que não passe a ser submetido a uma leitura laica e historicista.
Em geral se reconhece- como o fez Marx- o trabalho de Pierre Bayle, o Dicionário Histórico e Crítico, publicado no século XVII, como um marco definitivo no sentido dessa ruptura e desse enfrentamento. Ali os fatos se contrapõem a toda digressão bíblica, tida como essencialmente fantasiosa (Breisach, 1994: 192). “Ao dissolver a metafísica pelo ceticismo”, explicou Marx, “anunciou a sociedade atéia que não ia tardar a existir” (Marx e Engels, s/d: 191). Bayle compartilhava do mesmo ímpeto de tantos outros historiadores da época no sentido de descobrir e valorizar as razões humanas para o entendimento do processo histórico. O objeto do conhecimento, como escreverá, mais tarde, Feuerbach, em pleno triunfo da ciência cética, não é “um ser conceitual abstrato, mas o ser real, o verdadeiro Ens realissimum- o homem” (Feuerbach, 1989: XV). No caso da história, todo desenvolvimento teórico e metodológico será marcado pelo aprofundamento da busca pela objetividade documental, primordial testemunho da existência humana.
Huston Smith assinalou que semelhante movimento secular faz parte da construção de um visão de mundo fundada em uma “estupenda hierarquia espacial, uma hierarquia de medidas” (Smith, 1992: 1), basicamente, portanto, quantitativa e objetiva. Em história, por exemplo, isso significou passar a lidar apenas com o que possa ser contado, medido e dimensionado objetivamente. Assim, tal sistema se opõe a todos os outros que sustentam, na opinião de Arthur Lovejoy, ser o universo “composto de um imenso ou... infinito número de elementos articulados de forma hierárquica, do mais elementar tipo de ser existente até a maior elevação possível, ao Ens perfectissimum” (Smith, 1992: 5). Isto é, que erigiam a qualificação e a subjetividade, definidas em função de uma instância absolutamente superior, como parâmetros básicos para entender a lógica do mundo.
A “grande secularização” recusou, portanto, o império da subjetividade, estabelecendo que apenas os conceitos que pudessem ser materialmente dimensionados contassem para a compreensão dos processos. Como escreveu Fuerbach, “eu encontro minhas idéias apenas nos elementos que possam ser apreendidos através da atividade dos sentidos. Eu não gero o objeto a partir do pensamento, mas o pensamento a partir do objeto” (Feurbach, 1989: XIV). É evidente que essa crítica propiciou, na astronomia, na química e na história, um aprofundamento extraordinário no entendimento e controle dos fenômenos. Os movimentos reais puderam ser vistos em maior ou menor grau sem o filtro das qualificações ou subjetivações, e sua lógica, antes obscurecida, tornou-se clara. A descoberta de sua racionalidade interna fez com que pudessem ser também manipuladas pelo ser humano, com sucesso. Essa visão de mundo, por razões filosóficas e políticas, portanto, denunciou todos os sistemas que tinham por objeto a substância imaterial, ou seja, os sistemas metafísicos. Donde a condenação geral à metafísica: “todos os metafísicos e teólogos são necessariamente charlatões”, resumiu Voltaire (apud Baumer, 1960: 55).

Nenhum comentário:

Postar um comentário