II
A crítica da metafísica e da religião atingiu uma expressiva maturidade teórica no século XIX. H. Paton considerou a existência de quatro vagas anti-religiosas que culminaram então: a primeira da física, a segunda da biologia, a terceira da psicologia e por fim, a última e mais decisiva, a da história (Paton, 1973: 174). A história do XIX tem de fato um papel fundamental em todo esse processo. Basta levantar a questão da crítica textual bíblica, cujos efeitos já foram inicialmente anotados. Ainda segundo Paton, “a crítica moderna minou, primeiro, a autoridade do Velho Testamento e em seguida do Novo, no sentido de que a crença tradicional num livro infalível, escrito por Deus, não pode mais ser aceito por qualquer homem inteligente de julgamento independente” (Paton, 1973: 174). Essa realidade foi repercutida na filosofia, e particularmente importante nesse sentido foi o trabalho de Ludwig Feuerbach, de grande influência nos meios intelectuais europeus da época e, como se sabe, em Marx (Harvey, 1985: 291).
Em “A essência do Cristianismo” Feuerbach elaborou uma crítica “antropológica” ou “psicológica” para o fenômeno religioso, propondo sua explicação e superação. Para Feuerbach, como resumiu Engels, “fora da natureza e dos homens não existe nada, e os seres superiores que nossa imaginação religiosa forjou não são mais que outros tantos reflexos fantásticos de nosso próprio ser” (Engels, 1986(b): 362). “Deus”, afirmou Feuerbach, “é a mais alta subjetividade do homem abstraída de si mesmo” (Feuerbach: 31), isto é, uma projeção. Segundo ele, “o homem não sente nada em relação a Deus que ele não sinta em relação ao homem”, donde seu aforismo, “Homo homini deus est”. Diante da tese de Hegel de que a religião seria um movimento no sentido de passar "da finitude da consciência e da fini¬tude em geral, que chamamos nós- ou eu- ao infinito, ao ser infi¬nito, mais precisa¬mente defi¬nido como Deus" (Hegel, 1988: 162-163), Feuerbach propôs que “a consciência do infinito nada mais é do que a consciência da infinidade da consciência” (Feuerbach, 1986: 3).
A idéia de que o religioso era uma projeção de desejos ou pensamentos humanos se tornará muito influente no pensamento posterior. Já em princípios do século XX, Freud a desenvolveu, ao propor que “a religião seria a neurose obsessiva universal da humanidade, tal como a neurose obsessiva das crianças, ela surgiu do complexo de Édipo, do relacionamento com o pai” (Freud, 1980: 57). Assim, a transfiguração da religião em fenômeno histórico permitiu a sua compreensão a partir de variáveis humanas, alcançáveis pelo humano. Nesses casos estabeleceu-se claramente que aquilo que outrora fora entendido como uma realidade metafísica na verdade era apenas fruto de uma alucinação, de uma falsa ou ilusória experiência perceptiva. Apenas o conhecimento científico foi considerado apto a fornecer uma resposta real sobre o mundo ao homem.
O mais radical entendimento do assunto foi, no entanto, obra de Karl Marx. Ali o materialismo científico alcançou sua maior e mais conseqüente expressão. O seu aforismo “não é a consciência do homem que determina a existência, mas sua existência social que determina sua consciência” (Marx, 1984: 21) resume o objetivo de absoluta secularização dos estudos das ações dos homens na História. É compreensível, portanto, que também tenha lançado as bases para a mais devastadora das críticas aos sistemas religiosos. A obra de Feuerbach levantou-lhe uma série de questões fundamentais sobre o assunto. Saudou inicialmente “A essência do Cristianismo” como “os primeiros escritos desde Hegel... que contém uma real revolução teórica” (Marx, 1964: 64). Concordou especialmente com o fato de que “o homem que busca um super-homem na fantástica realidade do céu... nada mais encontra que o reflexo de si mesmo” (Marx, 1964:41).
É necessário anotar, no entanto, que a crítica de Marx à religião estava longe de ser mera especulação filosófica ou psicológica. Marx estava preocupado com o tema da revolução social e absorvido com o complexo entendimento holístico materialista da trama da História. Assim, não podia deixar de considerar, acima de tudo, que a religião deveria ser entendida não como um conjunto de idéias que pairava no abstrato, mas como dinâmica social que servia de instrumento legitimador do poder do Estado. Assim, Marx chegou à sua célebre conclusão de que a religião “é o ópio do povo”. “A abolição da religião na sua condição de felicidade ilusória do povo é necessária para a real felicidade deste. A demanda para eliminar a ilusão do povo sobre sua condição é a demanda para eliminar uma condição que necessita de ilusões” (Marx, 1964:41). Mais importante que as idéias religiosas, portanto, eram as instituições religiosas e seu papel na sociedade de Estado. A crítica da religião só tinha sentido dentro de uma crítica global da sociedade tal como ela existia: uma sociedade de classes fundada na exploração do homem pelo homem. Nas “Teses sobre Feuerbach”, Marx explicará que “depois de descobrir na família terrestre o segredo da sagrada família, há que criticar teoricamente e revolucionar aquela” (Marx, 1986:8).
A ruptura com a religião não era, portanto uma mera ação intelectual, mas ação política, institucional, social e econômica. O “ópio” era, na época de Marx, uma droga de consumo massivo. Através dela se entrava em um universo ilusório, no qual os usuários passavam a viver, alheios ao mundo real. Alucinação, sem dúvida, e, em ambos os casos, alucinação à serviço do poder. Quando for tratar do papel das mercadorias na sociedade capitalista, Marx se referirá ao fetichismo da mercadoria, ao seu “caráter místico” e “enigmático”. “Para encontrar uma analogia”, explica, “temos de nos deslocar à região nebulosa do mundo da religião. Aqui, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, figuras autônomas, que mantém relações entre si e os homens” (Marx, 1983: 70-71). Não apenas alucinação, portanto, mas alienação (Pals, 1996: 133). Ou, como definiu Godelier, “um domínio no interior do qual o homem representa de modo imaginário aquilo que é e age de maneira ilusória sobre esta realidade imaginária” (Godelier, s/d: 322). A prática religiosa podia ser comparada com a relação dos homens com as mercadorias numa sociedade de consumo ou com aquela que os viciados tinham com o ópio. Essa é uma observação importante, pois Marx aqui delineou uma dinâmica característica do sistema capitalista, que é o da criação de uma dependência irracional dos setores consumidores pelas mercadorias - dinâmica que fornece uma das bases fundamentais da construção do sistema.
Nesse sentido, como anotarão alguns estudiosos do século XX, a concepção de Freud se aproximará da de Marx, principalmente porque ambas verão o sentimento religioso como um fenômeno dotado de uma patologia de fundo psicológico. O conservadorismo de Freud, no entanto, fez com que temesse uma “cura” universal da religião, pois, em sua opinião, “os crentes devotos” são “salvaguardados do risco de certas enfermidades neuróticas: sua aceitação da neurose universal poupa-lhes o trabalho de elaborar uma neurose pessoal” (Freud, 1980: 58). Engels, ao contrário, não via qualquer utilidade da religião. Sustentará que o cristianismo “se foi convertendo cada vez mais em patrimônio privativo das classes dominantes, que o emprega como mero instrumento de governo para controlar as classes inferiores” (Engels, 1986(b): 393-394). Ele defendeu, portanto, que o materialismo histórico permite a superação de toda filosofia e religião, pois possibilita “compreender” a realidade de uma forma global. A história, disciplina científica e libertadora do ser, que revela a lógica antes oculta das sociedades, substitui a religião e a “filosofia clássica”. A história surge em oposição à história bíblica, mas seu desenvolvimento não se esgota na crítica textual: ele se amplia à crítica de toda a religião. A “tradição cética” encontra assim um de seus pontos culminantes.
A influência de Feuerbach, portanto, é muito grande na compreensão de diversas dinâmicas sociais, extrapola o estudo da religião e se estende à avaliação de então nascentes mercados, tanto o consumidor mais geral quanto o de drogas. Mas já anotamos que as soluções de Feuerbach não foram suficientes para Marx. Este criticou o seu “materialismo contemplativo” nas “Teses sobre Feuerbach”, preconizando que não se tratava, com Feuerbach o fizera, apenas de interpretar o mundo, mas sim de transformá-lo (Marx, 1986: 9).
Marx, no entanto, era um pensador profundo, e embora não estivesse diretamente preocupado com o fenômeno religioso, mas sim com as questões de transformação do mundo, em alguns momentos pareceu separar um pouco o tema da crítica às instituições religiosas do estudo do problema religioso em si. Marx, de forma conseqüente, expressou suas dúvidas sobre se o problema específico da religião poderia ser resolvido de forma absoluta: “Feuerbach”, escreveu, “parte do fato de a religião tornar o homem estranho a si próprio e desdobra o mundo num mundo religioso, imaginário, e num mundo real. O seu trabalho consiste em reconduzir o mundo religioso à sua base temporal. Ele não vê que, uma vez realizado este trabalho, o principal continua por fazer.” (Marx, 1986: 8). Existiria, portanto, todo um trabalho teórico ainda a ser realizado sobre o tema. Mesmo porque o desenvolvimento do conhecimento exige transformações na teoria e é provável que percebesse que essa realidade falibilista da ciência também se aplicava ao estudo materialista do religioso.
Uma questão básica relativa a esse empreendimento teórico foi explicada no “Capital”: “Toda história da religião que não leva em consideração essa base material não é crítica. É, na realidade, mais fácil descobrir pela análise o núcleo terrestre das nebulosas criações da religião do que fazer ver por um caminho inverso como é que as condições reais da vida revestem pouco a pouco uma forma etérea” e acrescenta: “o primeiro método é o único materialista e portanto o único científico” (Marx, 1957: 367). Isso quer dizer, inicialmente, que a crítica iluminista à metafísica é base fundamental para o tratamento do assunto e sobrevive incólume no pensamento marxista. Partir de conceitos metafísicos para então tentar entender como são revestidos pelos elementos materiais não é ação científica. É interessante que Marx prefira dizer isso afirmando que esse procedimento é, por oposição à facilidade da ciência, muito difícil - mas não impossível. É também curioso, nessa nota do Capital, numa passagem onde Marx discute as origens das máquinas e a diferença entre estas e as ferramentas, onde trata do trabalho, portanto, a forma neutra como lida com o assunto. O “difícil” ou o “fácil” tem a ver com a dificuldade de lidar com o subjetivo e a facilidade de lidar com o objetivo. A primeira coisa é incontável, imponderável. A segunda contável e ponderável. Mas é realmente fácil lidar com o objetivo?
Sem dúvida o será se aceitarmos que a objetividade é capaz de resolver todos os problemas subjetivos possíveis. Mas Engels, numa célebre carta a Josef Bloch, procurou deixar claro que ele e Marx jamais afirmaram que o fator econômico, isto é, “o processo de produção e reprodução da vida real” era o “único determinante” para o movimento histórico, ou para o seu entendimento, mas tão somente o era “em última instância”. “Os diversos fatores da superestrutura que sobre ele se levanta... e inclusive os reflexos dessas lutas reais no cérebro dos participantes, as teorias políticas, jurídicas, filosóficas, as idéias religiosas e o desenvolvimento posterior destas até serem convertidas em um sistema de dogmas – exercem também sua influência sobre o curso das lutas históricas e determinam, predominantemente em muitos casos, sua forma... de outro modo, aplicar a teoria a uma época histórica qualquer seria mais fácil que resolver uma simples equação de segundo grau” (Engels, 1986(a): 514). Assim, pelo menos na avaliação de Engels, a facilidade declinada por Marx no Capital é relativa. Uma “forma etérea”, certamente não um conceito metafísico, mas subjetivo, pode determinar uma “forma”, objetiva. Não há como, apenas através da objetividade, solucionar todos os problemas possíveis de serem levantados numa análise histórica.
Os elementos superestruturais – em princípio identificados como subjetivos – exercem um papel dinâmico, assim, no curso dos acontecimentos históricos, e esses são de difícil ponderação. Nesse sentido adquire lógica a afirmativa de Marx sobre a dificuldade de lidar com eles. É óbvio que, em princípio, ao se afirmar a base materialista de consideração do “processo de produção e reprodução da vida real”, pode-se estabelecer com certeza que tais elementos subjetivos são históricos e dinâmicos. Não podem ser, certamente, eternos ou universais – tal como são entendidos a partir da metafísica realista, por exemplo. A “tradição cética”, portanto, culminando em Marx, se torna cada vez mais densa e problemática. Como escreveu Ken Wilber, recentemente, um cientista pode por um dedo num ecossistema, mas não na compaixão, já que esta “não tem local” (Wilber, 1998: 59), isso é, não pode ser objetivada. A honestidade científica presente no marxismo, portanto, não pode afinal deixar de reconhecer o problema introduzido no método pelas questões suscitadas a partir da observação da realidade. Encaminhar soluções para essa questão será um tema importante do marxismo do século XX.
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